Em nossa última coluna, publicada na edição do ConJur
de 15 de junho de 2015, indagamos se as associações sem fins
econômicos poderiam ser empresárias. Naquela oportunidade, concluímos
que o escopo sem fins econômicos não seria incompatível com o
desenvolvimento de atividades lucrativas, inclusive aquelas
genericamente qualificadas como empresárias, a teor do artigo 966 do Código Civil.
A
assertiva conduz inúmeras consequências que se propagam por outros
setores do ordenamento jurídico. Uma delas diz respeito à eventual
incidência do Código de Defesa do Consumidor quando as associações
ofertam produtos e serviços aos seus associados. Seria o Código de
Defesa do Consumidor aplicável às relações jurídicas entabuladas entre
as associações e os seus associados?
Antes de procurar uma
satisfação para essa interrogação, acreditamos ser necessário avançar na
diferenciação entre a ausência de finalidade econômica e a atividade
lucrativa ou, ainda, entre o lucro objetivo e o lucro subjetivo, tal
como delineado em nossa coluna anterior.
Enquanto as sociedades devem se circunscrever a um objeto social,
que delimita o conjunto de atividades que serão desenvolvidas e
orientadas à obtenção e posterior distribuição de lucros, os lindes das
associações sem fins econômicos não se configuram por um objeto social
ou por um rol de atividades.
Procuramos esclarecer essa distinção
em obra monográfica dedicada ao tema: “(...) se, para caracterizar o
subtipo das sociedades, o legislador flagrantemente fixou os dados
referentes ao objeto e ao escopo, no que diz respeito ao subtipo das
associações em sentido estrito, a sua caracterização se dá meramente
pelo escopo sob uma perspectiva negativa, qual seja, a busca de ‘fins
não econômicos’ (artigo 53, caput, do CCB). Com isso, o
legislador brasileiro oportunizou a um incontável número de organizações
absolutamente diferentes entre si, a pertinência ao mesmo subtipo
associativo, não obstante o desenvolvimento de atividades muito
diferentes”[1].
Isso
permite que, sob o manto do tipo geral das associações, coexistam
entidades muito diferentes. Desde uma pequena associação de pais e
mestres até uma associação internacional dos produtores de tintas
acrílicas, passando por uma associação de adquirentes de unidades
imobiliárias de uma construtora falida.
Nessa desuniforme plêiade
de associações, é possível perseguir atividades igualmente diversas, que
podem estar mais próximas ou mais distantes do escopo associativo,
desde que o resultado seja destinado ao alcance das finalidades não econômicas que lhe caracterizam.
A
esse respeito, Massimo Basile explicou que a ampla gama de atividades
que podem ser exercidas em forma associada e os distintos interesses
realizáveis por seu intermédio fariam da associação uma categoria tão
ampla que o regramento encontrado no Código Civil assumiria um papel de
uma normativa geral ou de princípio[2].
Noutras
palavras. Muitas vezes, o regime jurídico aplicável não será apenas
aquele dedicado ao direito das associações no Código Civil. Iniciará no
direito das associações e encontrará o regramento jurídico apropriado
para determinado ato ou atividade em outras searas do ordenamento
jurídico. É justamente a partir dessa conclusão que deve ser alicerçada a
interrogação sobre a aplicabilidade do CDC nas relações entre a
associação e os associados.
Em tema de oferta de produtos e
serviços e, por consequência, de uma eventual aplicação do Código de
Defesa do Consumidor, selecionamentos pelo menos quatro situações que
demandam análises diferenciadas:
- a associação ofertando produtos ou serviços aos seus associados;
- a associação ofertando produtos ou serviços ao mercado, condicionando essa oferta a uma prévia adesão associativa dos consumidores;
- a associação ofertando produtos ou serviços para destinatários estranhos ao quadro de associados;
- a associação como adquirente de produtos e serviços ofertados em mercado.
Quando
a associação oferta produtos ou serviços aos seus associados, em geral,
inexiste uma relação jurídica de consumo. O associado, perante a
associação, titulariza uma posição jurídica de pertencimento. Por meio
dos estatutos, estabelece-se uma organização para a participação e a contribuição ao alcance do escopo comum, razão pela qual não se verifica a assimetria que é usual na relação polarizada entre fornecedores e consumidores no mercado para consumo.
Em poucas palavras. Nessas situações, o associado não “consome”. O associado vivencia os benefícios por ser e estar
associado, eventualmente usufruindo produtos e serviços recebidos em um
ambiente, jurídico e econômico, diverso daquele que é próprio ao que se
compreende como mercado.
Nos casos mais típicos, as atividades
desenvolvidas pela associação são determinadas, planejadas e executadas
pelos próprios associados aos seus pares. Não há oferta destinada ao mercado,
como expressamente previsto no parágrafo 2º ao artigo 3º do CDC:
“Serviço é qualquer atividade fornecida no mercado de consumo, mediante
remuneração, inclusive as de natureza bancária, financeira, de crédito e
securitária, salvo as decorrentes das relações de caráter trabalhista”.
A
impropriedade da aplicação generalizada do CDC às relações associativas
transparece quando se reflete, v.g., sobre a política nacional de
consumo descrita no artigo 4.º do CDC. Como identificar a vulnerabilidade do associado, no mercado para consumo, diante de uma relação paritária (artigo 55, CCB) que não se desenvolve em ambiente de mercado (artigo 4.º, I, CDC)?
Há
diversos precedentes que sublinham a sensível diferença entre a relação
jurídica de consumo e a relação jurídica associativa, mesmo nos casos
em que a associação oferta produtos e serviços aos seus associados.
Citamos,
neste sentido, julgado do STJ: “(...) inexistindo expressa previsão
estatutária, não é a entidade sócio recreativa, assim como por igual
acontece nos condomínios, responsável pelo furto de veículo ocorrido em
suas dependências, dada a natureza comunitária entre os filiados, sem
caráter lucrativo”[3].
Noutro precedente, proveniente do TJ-PR, extrai-se da ratio decidendi o seguinte fundamento: “Nos
clubes, em decorrência de sua natureza, as decisões são tomadas pelos
seus associados, diferentemente do que acontece nas empresas com
qualidade de fornecedor ou prestador de serviços, nas quais as decisões
são tomadas exclusivamente pelos proprietários, sem que o interessado
possa intervir de qualquer maneira. Desse modo, tendo em vista que são
os próprios associados dos clubes que deliberam acerca de suas regras,
não resta caracterizada qualquer relação de consumo, decorrente de
eventual serviço prestado, restando, afastada, portanto, a incidência do
Código de Defesa do Consumidor. Nesta esteira, os eventos ocorridos
nas dependências dos clubes recreativos devem ser dirimidos de acordo
com o que foi ajustado pelos próprios associados”[4].
Outro
exemplo socialmente típico é verificado na associação de adquirentes
que, vitimados pela insolvência de uma incorporadora, decidem
destituí-la e se associar para finalizar a construção das unidades
imobiliárias. Inexiste, aí, qualquer relação de consumo entre a
associação e os associados[5].
A
jurisprudência, curiosamente, orienta-se em sentido contrário nos
inúmeros precedentes que tratam da prestação de serviços de planos de
saúde aos associados. O entendimento solidificado, inclusive no STJ, é
de que: “(...) a relação de consumo caracteriza-se pelo objeto
contratado, no caso, a cobertura médico-hospitalar, sendo irrelevante a
natureza jurídica da entidade que presta os serviços, ainda que sem fins
lucrativos, quando administra plano de saúde remunerado a seus
associados”[6].
Nesses
precedentes, em sentido diverso do que se verificou nos julgados
anteriormente citados, a sorte pela aplicação ou não do CDC é decidida
pelo objeto do contrato e não pelo particular vínculo entre o associado e
associação. Parece-nos inadequado buscar o regime jurídico aplicável à
relação entre associação e associado apenas a partir do objeto do
contrato eventualmente entabulado entre essas partes.
Ao menos seria necessário distinguir os casos em que há uma associação mutualista (pela
qual os associados se organizam para ter acesso aos serviços de planos
de saúde que não estão sendo ofertados no mercado), hipótese na qual não
se deveria aplicar o CDC, das situações em que se ofertam planos de
saúde mediante a adesão dos interessados a uma determinada associação.
E
aqui chegamos ao segundo grupo de casos proposto. O CDC seria aplicável
quando a associação condiciona a oferta de produtos ou serviços a uma
prévia adesão associativa?
Sublinhe-se que, nesses casos, não se
verifica o vínculo de pertencimento que é típico às associações. O ato
de associar-se é um mero obstáculo para poder se consumir. Não é incomum
isso ocorrer na oferta de planos de saúde e, também, em determinadas
lojas que, para atender ao varejo, impõem uma prévia associação, ofertada genericamente a toda e qualquer pessoa que pretenda consumir os seus produtos.
Nessas
circunstâncias, os produtos e os serviços continuam sendo ofertados ao
mercado para consumo. A antessala da associação não afasta a
caracterização da relação de consumo, segundo os artigos 2.º e 3.º do
CDC, tampouco a vulnerabilidade desses consumidores associados perante a associação (artigo 4º, I, CDC).
A
terceira hipótese apresentada segue o mesmo resultado: quando a
associação oferta produtos ou serviços diretamente ao mercado, ou seja,
para destinatários estranhos ao quadro de associados, ensejando a
aplicação do CDC.
Se é possível à associação desenvolver atividade
empresária, tal como defendemos anteriormente, mostra-se igualmente
possível fornecer produtos e serviços ao mercado para consumo,
submetendo-se à qualificação de “fornecedora” e à aplicação do CDC.
Mencionamos, por fim, a circunstância de a associação ser consumidora,
ou seja, desta pessoa jurídica adquirir produtos ou serviços no mercado
para consumo, ocasionando a aplicação do CDC para protegê-la.
O que há de particular nisso? Trata-se de uma circunstância que, ao invés de infirmar, ajuda a confirmar a teoria finalista para a interpretação restritiva do que vem a ser o “destinatário final”
no artigo 2º do CDC, afastando as críticas de que tal viés teórico
inviabilizaria a aplicação do CDC às pessoas jurídicas. Isso, no
entanto, é assunto a ser desenvolvido noutra oportunidade.
*Esta
coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de
Direito Civil Contemporâneo (USP, Lisboa, Girona, UFPR, UFRGS, UFSC,
UFPE, UFF, UFC e UFMT).
[1] LEONARDO, Rodrigo Xavier. Associações sem fins econômicos. São Paulo : Revista dos Tribunais, 2014, p.206.
[2] BASILE, Massimo. Le persone girudiche. Milano : Giuffrè, 2003, p.81.
[3] STJ. REsp 310.953/SP – Rel. Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR – QUARTA TURMA –– J. 10.04.2007.
[4] TJPR. Apelação Cível n. 1335465-7. Rel. Juiz. Sérgio Luiz Patitucci. Julgamento em 28.05.2015. In: www.tjpr.jus.br.
Acesso em 02.07.2015. Mencionamos, também, o núcleo de precedente do
TJRS: “(...) É, pois, sabido que as associações, como é o caso da parte
ré (embora conste em seu estatuto tratar-se de sociedade civil), nos
termos do art. 53 do CC, se revestem daquelas características de pessoas
jurídicas de direito privado, constituídas pela união de pessoas que se
organizem para fins não econômicos, não havendo, entre os associados,
direitos e obrigações recíprocos. São, pois, pessoas reunidas por
interesses comuns, que não o lucrativo, diversamente do que ocorre nas
entidades com fins lucrativos (sociedades empresariais). Evidencia-se,
daí, não haver entre as partes litigantes relação de consumo, assim
compreendida a que tem em seus polos, de um lado o consumidor e, do
outro, o fornecedor, focados em um objeto, que pode ser um bem (móvel ou
imóvel, matéria ou imaterial, público ou privado) ou uma prestação de
serviço” (TJ-RS. Agravo de instrumento n. 70061195293. Rel. Des. Pedro
Celso Dal Prá. Julgamento em 09.10.2014).
[5] Tratamos do assunto no seguinte livro: LEONARDO, Rodrigo Xavier. Redes contratuais no mercado habitacional.
São Paulo : RT, 2003. A jurisprudência formada no STJ afasta, nestes
casos, a aplicação do CDC. Ao lado de outros julgados, destacamos: STJ.
REsp 860.064/PR, Rel. Ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em
27/03/2012, DJe 02/08/2012; STJ. AgRg no Ag 1307222/SP, Rel. Ministra
Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 04/08/2011, DJe 12/08/2011.
[6]
STJ. Agravo em Resp n. 642.409 – SC. Rel. Min. Raul Araújo. DJe.
30.04.2015. Em idêntica orientação, entre outros, cf. STJ. Agravo em
Resp n. 281.631-SC. Relatora Min. Maria Isabel Gallotti. Dje.
29.05.2015.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Obrigado por nos visitar. DEUS te abençõe. Jesus Cristo eh o Senhor.